ELEVAÇÃO DE PREÇO EM PROPOSTA APRESENTADA AO ÓRGÃO PÚBLICO É CRIME?
Sobre o tema deste artigo, nunca é demais rememorar que ninguém pode ser processado – e muito menos condenado – por ter apresentado proposta comercial em processo licitatório.
Aliás, princípios da garantia ao direito de propriedade e da livre concorrência, que, consoante os arts. 5º, inc. XXII e 170, inciso IV, respectivamente, de nossa Carta Magna, protegem o cidadão-empresário e a atividade comercial.
No entanto, em que pese a enorme controvérsia seja na doutrina, seja na jurisprudência, não é difícil encontrar situações em que o licitante e, também, o gestor, são responsabilizados pela “elevação arbitrária de preços”.
Esta posição encontra respaldo no artigo o art. 96, inc. I, da L. de Licitações que regula as condutas sancionáveis da parte penal da referida lei. Assim diz o art. 96, inc. I, da L. 8666/93:
“Art. 96. Fraudar, em prejuízo da Fazenda Pública, licitação instaurada para a aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente:
I – elevando arbitrariamente os preços”.
Considerando o acima dito, os tribunais têm dado a exata dimensão desta questão, visto que não podemos negar que o empresário-licitante vive buscando vender seus produtos e serviços e, consequentemente, sempre tem interesse em “fechar” negócios, o que é muito diferente da apresentação de proposta com prévio intuito de fraudar o certame licitatório.
Sobre isto, nunca é demais lembrar que o STF tem estado muito vigilante quanto a este aspecto. Vejamos:
“Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações” (HC nº 84.409-SP, Rel. para o Acórdão Min. GILMAR MENDES, DJ de 19.08.2005).
Nesse sentido, o saudoso e ilustre Ministro do STF CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO (in APN n 281-RR, p. 28, DJ de 23.05.2005), em passagem impar de seu voto que envolveu o art. 89 da L. 8.666/93, quando ainda integrava o STJ, assim se expressou:
“ No que concerne ao último, que estaria submetido ao regime do parágrafo único, não me impressiona o fato de ter havido substancial redução da oferta. Não se pode acusar o representante comercial de uma empresa somente pelo fato de ter interesse na comercialização dos produtos”. G.N.
Ainda sobre o dispositivo em comento, calho ao lanço o Voto preferido no Acórdão TCU nº 1455/2018[1], da lavra do Exmo. Senhor Ministro Relator BENJAMIN ZYMLER, que, com a precisão de um cirurgião, mergulhou sobre a questão do risco dos licitantes responderem por superfaturamento em solidariedade com os agentes públicos, visto que estes têm a obrigação de oferecer preços que reflitam os paradigmas de mercado, ainda que os valores fixados pela Administração no orçamento-base do certame se situem além daquele patamar.
Vejamos a seguinte passagem do Acórdão:
“ (…) No âmbito do Tribunal, o relator autorizou a citação do prefeito e da empresa contratada em razão do pagamento à empreiteira por serviços cujos preços estavam acima dos preços de referência do (…). Em sua defesa, a empresa arguiu que apenas apresentou proposta com base no projeto e no orçamento global elaborados pela Administração e anexados ao edital de licitação, os quais presumiu corretos. Aduziu, ainda, a inexistência de orçamento detalhado. Em seu voto, o relator afirmou que ‘embora as peças informativas do certame gozem de presunção relativa de legitimidade, a empresa contratada não está isenta de ressarcir os prejuízos causados ao erário, se os preços praticados, embora menores que o orçado, estiverem acima dos parâmetros de mercado’. No mesmo sentido, asseverou que ‘não prospera o argumento de que não cabe a responsabilidade da empresa por eventual dano ao erário se os preços da proposta estiverem compatíveis com as planilhas orçamentárias, pois compete à Administração adequar os preços às tabelas oficiais ou a outras especificidades. Com relação ao assunto, de fato, os preços da proposta da construtora estavam em consonância com o limite máximo do valor global fixado no orçamento-base do certame. Porém, se por um lado o orçamento-base deveria cumprir os critérios estabelecidos no art. 43, inciso IV, da Lei 8.666/1993 e no art. 115 da LDO/2007, por outro os preços da proposta e do contrato deveriam seguir duas barreiras de controle: o próprio orçamento-base e os preços do (…)’. A análise conjunta dos dispositivos mencionados ‘implica que o particular, ao adentrar o ambiente das contratações públicas, deve, além de cumprir o edital e, portanto, o orçamento-base, praticar preços que estejam de acordo com tais premissas’. Continuou o relator: ‘Diante desse dever jurídico, decorrente da submissão circunstancial do particular ao regime jurídico-administrativo das contratações públicas, o agente privado deve pautar sua conduta de acordo com as regras postas pelo ordenamento jurídico. Com isso, o particular responde plenamente por essa manifestação voluntária tendente ao aperfeiçoamento do vínculo contratual, podendo responder por superfaturamento decorrente de sobrepreço se a sua proposta voluntária não atender aos ditames estabelecidos pelo ordenamento jurídico’, colacionando decisões do STF na mesma linha de entendimento. O Plenário julgou irregulares as contas do gestor e da empresa contratada, imputando-lhes solidariamente o débito e condenando-os ao pagamento de multas individuais, com fulcro no art. 57 da Lei 8.443/1992”. Grifos nossos e do original.
Sobre a juridicidade de contemplar em proposta comercial os “riscos do negócio”, vejamos a seguinte passagem do culto Prof. PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR:
“a conduta punível não consiste numa elevação qualquer de preços de mercado, mas numa elevação arbitrária. Assim, a majoração haverá de ser injustificada, desmotivada, contrariando regras e princípios” (Direito Penal das Licitações, p. 50). G.N.
No mesmo e preciso sentido de respeito ao indivíduo o ilustre Prof. MARÇAL JUSTEN FILHO[2], em conhecido trabalho científico merecedor de elogios, após mencionar a nítida intenção do constituinte em outorgar a todos que militam na atividade empresarial à ampla liberdade comercial, aduz que:
“A elevação de preços não pode ser tipificada como crime. Nesse ponto, o dispositivo é inconstitucional, por ofender os arts. 5º, inciso XXII ( garantia ao direito de propriedade), e 170, inc.IV (livre concorrência). Todo particular tem assegurada a mais ampla liberdade de formular propostas de contratação à Administração Pública. Para tanto, examinará seus custos, estimará seus lucros e fixará os riscos que pretende correr. Não pode ser constrangido a formular proposta para a Administração Pública idêntica à que formularia para terceiros. Portanto, se o particular decidir elevar seus preços, ainda que de modo arbitrário, não praticará ato reprovável pela lei penal. Se a Administração reputar que os preços são excessivos, deverá rejeitar a proposta”. G.N.
Pois bem. A elevação de preços passível de punição é aquela injustificada e sem o menor motivo.
No entanto, quando a Comissão de Licitação verifica que eventual proposta foi apresentada fora da diretriz do edital ou quando esta decidir por bem, de modo fundamentado, inabilitar todos os licitantes, visto que os preços fogem do parâmetro delineado na cotação o que então deve fazer a Comissão de Licitação nesta hipótese?
A resposta não requer maiores aprofundamentos, visto que existe dispositivo legal sobre esta questão. Assim, deve o Poder Público aplicar o § 3º do art. 48 da L. 8.666/93, com abertura do prazo de 8(oito) dias para que os licitantes, inabilitados, apresentem novas propostas.[3]
Atento ao disposto no art. 48, § 3º, da L. 8.666/93, o Plenário do TCU [4] através do Acórdão nº 429/2013–Plenário, Processo TC 045.125/2012-0, Exmo. Senhor Relator Ministro-Substituto AUGUSTO SHERMAN CAVALCANTI, j. em 06.03.2013, decidiu que a regra do dispositivo não pode ser utilizada simultaneamente para desclassificação e inabilitação de licitantes:
“Representação de empresa apontou supostas irregularidades no Pregão Presencial (Internacional) 232/2012, realizado pela (…), com vistas à aquisição de cela de dispensa e processamento de radiofármaco. Destaque-se, entre elas, a aplicação indevida do disposto no art. 48, § 3º, da Lei 8.666/1993, uma vez que não se poderia permitir que licitantes inabilitadas e desclassificadas reapresentassem novos documentos. Segundo a representante, o dispositivo legal citado prevê situações alternativas, evidenciadas pela conjunção ‘ou’. O Relator observou que, no mencionado Pregão, ‘em razão da desclassificação de duas propostas e da inabilitação do único proponente com proposta classificada, decidiu o pregoeiro pela aplicação do referido dispositivo, de modo que fixou prazo para que todos os licitantes credenciados reapresentassem propostas ou novos documentos…’. Concluiu que, de fato, houve irregularidade no procedimento adotado. Ressaltou que ‘o dispositivo prevê a possibilidade da chamada ‘repescagem’ das propostas ou das habilitações, de modo que sua aplicabilidade está adstrita a cada uma das duas fases (ou etapas) previstas em uma licitação: ou se aplica na fase de habilitação, quando todos os licitantes são inabilitados, ou se aplica na fase de classificação das propostas (julgamento), quando não há proposta classificada’. Valeu-se, então, de deliberação deste Tribunal (Decisão 85/1998-Plenário) segundo a qual a própria interpretação sistêmica da Lei 8.666/93 indica a distinção entre as duas fases da licitação, ‘pois esse diploma legal em seu art. 41, § 4º, preconiza que: § 4º A inabilitação do licitante importa preclusão do seu direito de participar das fases subsequentes’. Citou ainda o Acórdão 2.048/2006-Plenário, no qual restou consignado que,’se um único licitante preencher os requisitos estabelecidos no edital, não se deve admitir o saneamento dos vícios por parte dos demais. Além disso, a regra não pode ser aplicada relativamente a licitantes já excluídos em outras fases no curso da licitação’. Ressaltou que no Pregão há uma inversão de fases, mas que,’ainda assim, há etapas distintas da licitação (…). E como a aplicação do art. 48, § 3º, da Lei 8.666/1993 ao pregão se dá de forma subsidiária … o entendimento adequado acerca da aplicação do dispositivo ao pregão deve ser mesmo aquele segundo o qual se considera distintamente as etapas do procedimento’. O Tribunal, então, ao acolher proposta do relator, considerou parcialmente procedente a representação, sem determinar a anulação do certame, ‘uma vez que o procedimento adotado não influiu no resultado do pregão’. Em relação à irregularidade apontada, deu ciência ao Ipen de que a regra prevista no art. 48, § 3º, da Lei 8.6668/1993 não pode ser aplicada a licitantes já excluídos em outras etapas no curso da licitação, ‘sendo possível sua aplicação ou aos licitantes desclassificados, quando houver desclassificação de todas as propostas, ou aos inabilitados, quando todos os licitantes participantes da fase de habilitação forem considerados inabilitados, e não a ambas as situações simultaneamente …’. Precedentes mencionados: Decisão 085/1998-Plenário e Acórdão 2.048/2006-Plenário”. Grifos do original.
Não podemos esquecer que o dispositivo por conter norma de aplicação facultativa por parte da Administração não impede que o Poder Público, em vez de aplicá-lo, repita o certame licitatório com a abertura de nova sessão pública para apresentação de propostas.
Por fim, é importante lembrar que a existência de apenas um licitante em determinada fase da licitação não impede a aplicação do dispositivo acima, ressalvado caso de convite que a lei é expressa ao exigir o mínimo de três propostas [5].
Esta
posição foi também mantida pelo TCU [6] ao
apreciar licitação conduzida por determinado ente público federal.
[1] Informações extraídas do Informativo de Jurisprudência sobre Licitações e Contratos nº 349/2018 do Tribunal de Contas da União, mantido no sítio da Internet do TCU: www.tcu.gov.br. Acesso em: 16.08.2018.
[2] Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 5ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Dialética. 1998, p.599.
[3] Importante alertar que a Comissão de Licitação deve ficar atenta e sempre consignar na ata de julgamento qual foi o motivo relacionado com eventual decisão de inabilitação dos licitantes como, por ex., violação de algum critério especifico previsto no edital, eventual discrepância de propostas, pouco interesse do mercado na licitação, etc.
[4] Informações extraídas do Informativo de Licitações e Contratos nº 142/2012 do Tribunal de Contas da União, mantido no sítio da Internet do TCU: www.tcu.gov.br. Acesso em: 16.08.2014.
[5] Acórdão TCU nº 3520/2013-Segunda Câmara, TC 040.179/2012-5, Exmo. Senhor Ministro-Relator AROLDO CEDRAZ, j. em 18.6.2013, apud Informativo de Licitações e Contratos nº 156/2013 do Tribunal de Contas da União, mantido no sítio da Internet do TCU: www.tcu.gov.br. Acesso em: 16.08.2014.
[6] Acórdão nº 429/2013-Plenário-TCU, TC nº 045.125/2012-0, Exmo. Senhor Ministro-Substituto AUGUSTO SHERMAN CAVALCANTI, j. em 06.03.2013, apud Informações extraídas do Informativo de Licitações e Contratos nº 142/2012 do Tribunal de Contas da União, mantido no sítio da Internet do TCU: www.tcu.gov.br. Acesso em: 16.08.2014.